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O fim do “bico” no setor privado: Governo quer multar policiais e guardas municipais em até R$ 30 mil por vigilância clandestina

Com novas regras prestes a entrar em vigor, o uso de armas, a atuação de policiais fora do expediente e a repressão a empresas clandestinas entram no radar do governo, acirrando o controle sobre um setor até então pouco fiscalizado.

por Alisson Ficher Publicado em 12/06/2025
O fim do “bico” no setor privado: Governo quer multar policiais e guardas municipais em até R$ 30 mil por vigilância clandestina

A cena parece comum em muitas cidades brasileiras: um homem de postura rígida, olhar atento e arma na cintura faz a ronda de um supermercado ou escolta discretamente um empresário.

Mas nem sempre ele está onde deveria estar.

Embora a presença possa transmitir sensação de segurança, por trás desse tipo de serviço muitas vezes se esconde uma atividade ilegal — e com um agravante: o envolvimento de agentes públicos da segurança, como policiais e guardas municipais.

Segundo informações da Folha de S.Paulo, o governo federal prepara uma ofensiva legal para coibir a atuação clandestina de policiais e outros profissionais da segurança pública no setor privado.

A medida, que deve ser publicada por decreto presidencial, prevê multas de até R$ 30 mil para quem for flagrado exercendo atividades de segurança privada sem autorização da Polícia Federal, responsável pela fiscalização da área.

A iniciativa faz parte da regulamentação do novo Estatuto da Segurança Privada, sancionado em setembro de 2024, que substitui regras em vigor desde 1983 e busca modernizar o setor, ampliando o controle estatal sobre suas operações.

Um mercado bilionário, mas pouco fiscalizado

A segurança privada no Brasil movimenta cifras gigantescas.

Segundo dados da Polícia Federal, existem mais de 3.300 empresas legalizadas atuando no setor.

Elas prestam serviços que vão desde escolta armada e vigilância patrimonial até monitoramento eletrônico e proteção pessoal.

Apesar da regulamentação, uma parcela expressiva dessas atividades ainda ocorre à margem da lei, com o uso de profissionais sem formação adequada, empresas fantasmas e até servidores públicos em jornada dupla não autorizada.

É comum encontrar policiais militares, civis e guardas municipais prestando “bicos” como seguranças privados, seja armados ou não.

O problema é que a maioria dessas atuações ocorre sem a devida autorização, o que configura infração administrativa e, em alguns casos, até crime.

O que muda com o novo decreto

O decreto proposto pela Polícia Federal e atualmente em análise no Ministério da Justiça estabelece parâmetros mais claros para o combate à segurança privada clandestina.

Entre os principais pontos, estão:

  • Multa de R$ 1 mil a R$ 10 mil para pessoas físicas que atuarem sem autorização;
  • Multa de R$ 10 mil a R$ 30 mil para empresas envolvidas, com agravamento em caso de reincidência;
  • Caracterização da clandestinidade mesmo em serviços desarmados, ou seja, mesmo o uso de uniforme e presença ostensiva sem autorização passa a ser penalizado;
  • Obrigatoriedade de formação e vínculo com empresa autorizada para todos os profissionais do setor;
  • Especificação dos calibres de armas permitidas para vigilantes legais, como pistolas calibre .380 e espingardas calibre 12.

A proposta também endurece a punição para organizações ou indivíduos que operem com uso de armamento sem licença, tornando a prática um crime com pena de até três anos de detenção.

A prática do “bico” e seus riscos à ética pública

Para muitos especialistas, o envolvimento de policiais em atividades privadas representa um conflito direto com o interesse público.

De acordo com José Vicente da Silva Filho, coronel reformado da Polícia Militar e pesquisador da USP, “o policial que faz bico na segurança privada deveria ser demitido”, pois estaria usando a expertise adquirida no serviço público para benefício pessoal, o que compromete a ética e enfraquece a integridade institucional.

Casos emblemáticos ajudam a ilustrar os perigos dessa informalidade.

Em 2020, o país se chocou com a morte de João Alberto Silveira Freitas, espancado por dois seguranças em um supermercado do Carrefour, em Porto Alegre.

Um dos agressores era policial militar e atuava de forma irregular.

Outro episódio envolveu a escolta clandestina do empresário Antônio Vinícius Lopes Gritzbach, delator de membros do PCC e da Polícia Civil.

Ele foi assassinado no aeroporto de Guarulhos, sob proteção informal de policiais.

Fiscalização mais eficaz e punição imediata

Antes da aprovação do novo estatuto, a atuação da Polícia Federal era limitada apenas às empresas legalizadas, o que dificultava a repressão às práticas clandestinas.

Agora, a nova legislação permite que profissionais flagrados atuando de forma irregular também sejam penalizados de imediato, sem a necessidade de processos longos ou lacunas legais.

Ivan Hermano, vice-presidente da Fenavist (Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores), ressalta que a mudança dá à PF instrumentos mais eficazes para coibir abusos recorrentes no setor.

“Antes só podíamos agir contra empresas registradas; agora há clareza sobre o que é vigilância clandestina”, afirmou.

Alisson Ficher

Alisson Ficher